terça-feira, 19 de março de 2019

Manhã estranha,

nunca mais tive esse tipo de sono que persiste depois de esticar as pernas e suar a têmpora, surpreso pego pelo bocejo no sacolejo do ônibus. Uma menina tossia sem parar, tive que botar os fones de ouvido pra não me irritar - coitada, que culpa tem ela? Acertei e errei ao colocar Christian Scott no play (que às vezes me irrita também com os agudos ultra-penetrantes do trompete e não posso botar fones pra remediar pois já estou de fones e que culpa tem ele?), porque não consegui voltar aos poemas do Leonardo Fróes de tanto que o som me tomou, e depois diria ao Luquitcha pra se ligar nas levadas suaves da condução, que estamos compondo e é preciso estar atento pra pescar as coisinhas que nos deixam felizes.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Evolução

Faz alguns meses que a borboleta entrou no casulo e tá lá, hibernando, pulsando fraquinho. Em breve vai renascer uma lagartinha humilde, sem esplendor. Aos poucos vai tentando entender a natureza dessa evolução. Quer crer que a vida funciona em senóides e que daqui a alguns invernos retoma vôo. Por hora, se convence de que haverá um benefício nesse periodo sem asas – um tipo de liberdade dada pela limitação (entre um algarismo e outro há um precipício).

terça-feira, 6 de março de 2018

Noite a dentro

anoitece
e o mundo fica pouco diferente da caverna

algo em mim não permanece
e me custa perceber a distância do teto
se o que cintila é reflexo ou estrela

uma tristeza escolar de menino sozinho
faz seu ninho e seus ovos
são âncoras do quarto eterno
tempestade de ânfora que minha ânsia não doma

ânsia

espero o meu próprio retorno
na única forma possível do retorno: o sol
quente, o farol em mim

o herói correto
que acata a ordem dos fenômenos
e dorme profundamente quando
anoitece

porque demora?
será o teto preto noite
ou a casca interna da caverna?

me custa perceber o sol
ou será que ele hiberna?

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Vizinhança

Rosqueava a articulação do pedestal, ajustando o ângulo do microfone enquanto Lucas encaixava o prato de ataque e o cheiro de café fresco subia as escadas. A dois quarteirões dali, Antonio abria o tripé de uma estante, depois de tirar do armário seis caixinhas de microfones – dois deles recém chegados do exterior. Descendo algumas quadras pela Vila Madalena, Samuel procurava o timbre certo da caixa, queria que soasse sequinho e grave. Subindo em direção a Perdizes, Eduardo já passava o som pendindo "bumbo... ok, agora caixa", e, a poucas quadras, Otavio abria as guias no pro-tools enquanto o baterista tirava seus pratos do case. Sorveu um golinho do café e tentou imaginar quantas gravações de bateria estariam acontecendo naquele domingo pela vizinhança.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Ventos Suficientes

A nuvem de chumbo se instaura e fica por um tempo que sempre parece longo demais. Os moinhos eólicos espalhados nesse campo – inspirações, geradores de vontade – não giram faz tempo, suas hélices provavelmente enferrujadas por dentro. Imaginar um mundo em que os maiores obeliscos, se derrubados (ou se nunca tivessem existido), não fariam nenhuma falta, já que é insignificante o contingente de gente que mergulha de fato nas realidades possíveis (ou criadas) e qualquer impressão de relevância é ilusória. Nem mesmo os monólitos mais enraizados, tão mais colossais em sua fatia oculta (icebergs telúricos imunes ao calor em seus corpos de diamante), produzem vento, nem energia, nem inspiração. Mesmo assim, a nuvem presencia a tentativa dos cataventos, pequenos como girassóis espalhados nesse campo, cheios de boas intenções e planejamentos de auto-rotatividade para a geração de ventos suficientes enquanto, lá de cima, bloqueia a corrida natural do grande Ar ao som de uma profusão de promessas, trovões e chuvas torrenciais de flechas daninhas metralhadas na terra, que é eternamente ingênua, fecunda e castigada. O mundo prossegue acidental demais.